A Salvação

Abri os olhos desesperado, tomado pela dor das amarras eu engolfei o ar amargo antes mesmo que pudesse me dar conta da escuridão, tão profunda, os primeiros instantes me fizeram crer numa desesperadora cegueira.


Aos poucos, minha visão detectou os tímidos raios de luz que se erguiam para além da plataforma na qual eu repousava, deitado e imobilizado eu mal podia procurar a origem daqueles cintilantes fios de esperança que dançavam longe da minha visão, procurei pela calma, nessas situações esse é o melhor método de manter a sanidade, para minha surpresa a calma me trouxe algo além do conformismo, juntamente com o costume de minha noite eterna eu percebi o aterrador sobre mim, suspenso por ganchos, fechei os olhos e tentei acordar, não poderia ser verdade... tinha de ser mentira.

Pensei em tudo o que havia feito em vida, na vida miserável e absurda que a guerra e o caos me obrigaram a praticar, em cada domo saqueado, cada morte. No silêncio daquele quarto alienígena eu conclui que nem mesmo eu merecia aquele tormento, afinal de contas, no mundo que vivo meus pecados são como uma conversa casual.

Amarrado, faminto, com um cadáver suspenso sobre mim, quantos males havia eu praticado pra merecer tal cárcere?

Minha realidade se restringiu ao que minha imaginação permitia, enquanto o desespero não me oferecia as forças pra manter os olhos abertos, eu procurava em todas as formas de pragmatismo o conforto que a realidade me arrancava a cada piscadela. Ali suspenso, orgãos expostos, olhos fechados, meu solene companheiro testemunhou meu calvário, vomitei o vazio, senti a fome de 10 noites sem saber se foram estas concluidas, envolto na imundice eu ouvi o início da redenção.

Daquele corpo putrefato sobre minha sombra moribunda eu fui agraciado com o princípio de toda a iluminação que a reclusão poderia me oferecer, naqueles instantes eternos eu presenciei o renascimento da carne, minha fome foi gradativamente substituida pela fé que se apresentava em suculentos nacos cinzentos, eram derramados no meu, até então mórbido, paladar a carne e o sangue da salvação. Alimentei-me daquele que posteriormente descobri ser um anjo, seu vôo era permitido para além do mundo dos vivos, sua suspensão uma metáfora à sua natureza celestial, suas palavras ecoaram dentro do mim à medida que o pulsar pútrido da carne me abandonava, eu vi a verdade.

O profeta, o messias esteve entre nós e tal qual homem, caminhou e se alimentou como nós, viveu na imundice que vivemos e desfrutou dos mais amargos sofrimentos para encontrar a redenção, o renascimento, a ressurreição. No ápice de sua dor ele encontrou o abraço frio e inevitável da morte, e dela retornou, antes disso vagou pelas mansões dos mortos e após sua peregrinação renasceu, paradoxais e equivocadas tem sido todas as conclusões a respeito de sua jornada, incapazes de compreender a grandiosidade da ressurreição eles a descreveram com tudo o que o homem é capaz de compreender, exceto a morte em si. Todo o meu tormento havia se reveleado como a jornada necessária para encontrar a verdade há muito distorcida, eu havia ressuscitado, como ele, eu voltei dos mortos.

Eles não souberam compreender que o retorno não nos deforma, nos ilumina para a compreensão de que tudo o que há neste casulo quente e avermelhado, nada mais é do que transitório para o encontro da verdadeira vida eterna. Ele nos disse, “Quem crê em mim, ainda que morto, viverá” (Jó 11,225), eu a encontrei e agora compartilho da experiência única que o crucificado e somente ele haveria compreendido até a chegada da guerra, o apocalipse não chegou, o retorno do nosso salvador sim, ele virá conosco pra se alimentar dos impuros, mostrar-lhes que a carne nada mais é do que uma prisão, caminhamos as trilhas dos discípulos mais puros, vimos na distância a impureza da carne e sua deformidade, nos alimentamos do novo alimento, assim como os porcos chafurdam na imundice e dela se alimentam, assim o fazem os descrentes, nós, nos alimentamos do divino, da imagem e semelhança dele, nos alimentamos dos homens, agora compreendemos as metáforas que nos tratavam como ovelhas do pastor, qual melhor maneira de descrever a tenra carne do alimento adequado? O sacrifício oferecido aos deuses senão ovelhas? Rebanho supremo, rebanho nosso...

Após a redenção fui libertado de minhas amarras, meu nobre companheiro me foi apresentado apropriadamente e adentramos o clericato da nova ordem, esta noite a salvação haverá de alcançar uma cidade inteira, sinto a fome da redenção, meu espírito piedoso e seletivo me aproxima do verdadeiro deus e ouço seu canto enquanto liberto as almas deste absurdo sacrilégio que ainda chamam de vida, parafraseando a ele, “Deixai vir a mim as criancinhas e não as impeçais” (Lucas-18, 15-17) Amén.

By Osmar Weaver

1 Comentários:

Pergunte ao Anão disse...

Excelente

( By: George Rissi )

Postar um comentário