Sobrevivendo

Nós corríamos como loucos pela rua, os malditos atrás de nós. Eu mal havia tomado o café da manhã naquele dia e já estava tendo que fugir de novo. Nos últimos três dias minha vida se resumia a isso: matar para não morrer e fugir quando não houvesse mais opções. Michelle – minha namorada – corria ao meu lado, sua respiração ofegante se misturava ao barulho dos nossos passos enquanto corríamos como loucos fugindo daquele inferno. Atrás de nós, o barulho de passos e o grunhido daqueles monstros mostravam que não importava para onde nós fossemos, eles sempre estariam lá.

Será que eles ainda se lembravam do que era ser um humano? Será que ali, em algum lugar de suas mentes distorcidas, eles ainda poderiam lembrar de que uma vez tiveram família, amigos e amores? Não, acho que não. Para mim, eles são apenas monstros que não merecem nada menos do que a morte. Idiotas.
“Ali!”, a voz da Michelle chamou a minha atenção, apontando para um beco que separava dois prédios no final da rua.
Corremos o mais rápido possível, de mãos dadas. No final da rua, puxei seu braço com força e me joguei para dentro do beco, arrastando ela comigo.
“Será... que eles viram... a gente entrar... aqui?”, ela me perguntou,ofegante.
“Não sei”, respondi tentando ver se escutava passos se aproximando. “Mas é melhor continuar fugindo.”
Caminhamos pelo beco mais alguns metros quando escutei um barulho. Pareciam ser passos. Não é possível! Será que eles já nos alcançaram? Mas eles nem mesmo podem correr! Fiz sinal de silencio para Michelle e nos encostamos com as costas viradas para a parede. Lentamente – evitando qualquer tipo de barulho – deslizei minha mão por dentro da calça jeans e saquei minha arma.
Aguardamos parados, em silêncio. Os segundos pareciam horas enquanto ouvíamos eles se aproximando. Era quase impossível saber a que distância estavam. Meus olhos percorriam os dois lados do beco enquanto eu pensava em um jeito de fugir. De repente, tive uma ideia! Cutuquei Michelle e comecei a falar sussurrando.
“Se eu conseguir subir nesse muro, talvez dê pra entrar em um apartamento pela janela e abrir a porta para você. Eu posso subir naquela lata de lixo e –”.
Fui interrompido por um barulho estridente e uma chuva de vidro quebrado caiu sobre nós. Michelle gritou.
A janela de um dos apartamentos se estilhaçou e um corpo caiu na nossa frente. Era um senhor de idade. Em meio ao sangue e cacos de vidros que se espalharam pelo chão, pude ver que ele ainda estava vivo. Ele estendeu um dos braços em nossa direção e nos olhou, um olhar de quem havia desistido de viver. Um olhar que eu havia visto diversas vezes desde que aquele inferno começou.
“Não adianta...”, ele disse, em meio a uma tosse de sangue. “Iremos todos morrer de qualquer jeito...”. E seus olhos fecharam.
“Maldito! Se queria morrer por que não fez isso em silêncio? Agora o bairro inteiro deve estar atrás da gente por essa barulheira toda!”, era meu único pensamento.
E então, o barulho de tiros me fez desviar o olhar.
Michelle, com a arma apontada para o final do beco, se preparava para dar o segundo tiro em um zumbi que nos achou. Eu me juntei a ela, largando o corpo do velho morto no chão.
Um. Dois. Três zumbis caíam mortos ao som de nossos tiros. Quanto mais a gente matava, mais apareciam para nos pegar, guiados pelo som das armas. O beco silencioso era agora o palco de dezenas de corpos caídos, sangue e zumbis grunhindo. Será que tudo acaba aqui? Depois de todos esses meses, eu vou morrer por culpa de um velho suicida burro que pulou da janela justamente onde a gente estava se escondendo?
Eu podia prever. Em algum momento a munição iria acabar. A luta seria breve, talvez eu derrubasse um ou dois e então o primeiro iria me morder. Eu quase podia sentir a dor. A carne decomposta de mãos e braços me agarrando enquanto dentes cravavam em minha pele, rasgando a minha carne enquanto eu berrava de dor. Então eu veria meu próprio corpo sendo devorado vivo, enquanto minha namorada gritava, sem poder fazer nada. E o mesmo estaria acontecendo com ela, do meu lado.
E então, eu tive uma ideia.
“O corpo do velho!”, gritei para Michelle, enquanto atirava em dois malditos que vinham se arrastando pelo chão. Ela entendeu meu recado, foi até o corpo do homem e o arrastou até os meus pés, enquanto eu atirava.
“Então vocês querem carne, seus filhos-da-puta malditos?” comecei a gritar, para chamar a atenção deles. Quando todos estavam me olhando, ergui o corpo morto do velho e joguei na direção deles. Eu iria aproveitar o tempo que eles estivessem distraídos, agarrar Michelle e dar o fora daqui.
Mas as coisas nunca são fáceis assim, né?
“Não vai adiantar!” gritou Michelle, enquanto atirava nos zumbis que ignoraram o corpo do velho e continuavam a avançar em nossa direção. “Eles só comem carne de quem ainda está vivo!”
Então era isso. Nós iríamos mesmo morrer ali. Merda! E eu que achava que ia ser algum tipo de herói de guerra quando tudo isso acabasse. No final, não adiantou em nada ser o mais corajoso, inteligente e tudo mais. Eu iria ser morto do mesmo jeito que todos foram. Merda!
E então, o estampido seco dos tiros da arma da Michelle cessou. Repetidos cliques demonstravam que nosso pesadelo estava para começar: ela estava sem munição.
Eu ainda perdi alguns segundos atirando a esmo em tudo que se movia, mas desisti. De que adiantava gastar toda a munição se eu iria acabar morrendo? Talvez fosse melhor matar Michelle e me matar logo em seguida. Pelo menos iria doer menos.
E eles nos alcançaram.
Pude ver o pavor nos olhos de Michelle quando o primeiro zumbi agarrou o seu braço, cravando os dentes em sua pele branca. O sangue escorria rápido, manchando suas roupas e pintando de rubro a calçada a seus pés.
“Me mate!” ela berrou, quando recebia a segunda mordida. “Me mate agora, por favor!”, ela continuava berrando com lágrimas escorrendo em seus olhos, quando o segundo a agarrou.
Eu hesitei. Se ela já estava morta mesmo, que mal faria atirar nela? Pelo menos eu a livraria desse pesadelo. E então eles se virariam para mim. E seria a minha vez. Olhei mais uma vez em seus olhos, enquanto ela gritava. Meu corpo todo parecia paralisado em uma espécie de torpor, dividido entre o medo e a adrenalina.
Mas se ela já estava morta, então que diferença iria fazer?
Eu havia tomado a minha decisão.
Com um último olhar para ela, eu abaixei a arma, guardando-a de volta na cintura. Aproveitei os segundos em que os malditos se distraíram com ela e subi em um latão de lixo que estava por ali, arremessando meu corpo para o outro lado do muro, fugindo daquela cena.
Eu estava de novo nas ruas, livre. Do outro lado do muro, podia escutar o grito de pavor da Michelle enquanto os zumbis começavam a devorar sua carne. Ela gritava por mim, mas eu havia fugido. Eu havia abandonado o amor da minha vida, em troca da salvação.
Sei que por muitas noites irei gritar seu nome. Sei que esse pesadelo irá me perseguir para sempre toda vez que eu olhar para um desses malditos. Mas no final das contas, a vida agora não era apenas um jogo para sobreviver?
Eu estava sobrevivendo.



 
Conto por Thiago Fernandez, 
colaborador do desenvolvimento 
do Terra Devastada e autor 

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